quinta-feira, 6 de junho de 2013

INQUISIÇÃO NA PARAÍBA - PALESTRA PROFERIDA NO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO PARAIBANO



Na verdade, entre nós brasileiros, já houve a crença de que a Inquisição não existiu em nossa História. Oliveira Lima, célebre historiador pernambucano, afirmou “estar livre nossa história” da ação do Tribunal do Santo Ofício.

A descoberta dos documentos inquisitoriais referentes ao Brasil, no acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, mudou esta convicção anterior. Sabe-se hoje que algumas centenas de brasileiros foram processados pelo Santo Ofício, que marcou nossa cultura com um certo tipo de prática autoritária. A memória atual do ficcional caso de Branca Dias, na Paraíba, demonstra a força deste passado.

Ainda há pouco pensava no Congresso sobre Inquisição que houve em Lisboa e São Paulo como algo que deveria ter continuidade. Estive muito tempo na expectativa de receber uma carta da historiadora Anita Novinsky convidando para o II Congresso sobre a Inquisição. São 12 anos sem haver a continuidade daquele congresso. Sabemos a dificuldade para a programação dum congresso como aquele, que durou trinta dias entre Lisboa e São Paulo, com a participação de pesquisadores do mundo todo, inclusive da Rússia. E os custos foram enormes. Talvez por essa dificuldade não tenha se realizado o II Congresso.

Sempre que a gente fala sobre o tema Inquisição, lembro sua semântica, como se referiu um historiador norte-americano chamado Eduard Peters. No livro dele sobre a tortura, ele inicia dizendo: “a palavra tortura. uma vez pronunciada, realiza, tanto para quem pronuncia como para quem ouve, um imenso caldo de emoções”. E, em função disso, a pesquisa sobre tortura acaba ocorrendo dentro daquilo que chamamos “entropia semântica”. Entropia é uma palavra da Química: ocorre quando dois elementos químicos se fundem. Há um momento em que eles não são mais nem um e nem outro, e ainda não são o terceiro. No caso, a tortura geraria, segundo Peters, essa entropia semântica.

Da mesma maneira ocorre com a Inquisição. A palavra Inquisição, por si própria, já é suficiente para fazer lembrar uma série de atrocidades, e principalmente a intolerância religiosa, que durou tão longamente na história do Cristianismo.

Vamos tentar desenvolver nossa análise dentro de uma tendência da historiográfica contemporânea, cujo porta-voz mais importante, atualmente, é o Dr. Francisco Bittencourt, da Universidade Nova de Lisboa.

De uns tempos para cá, após a década de 80, que foi um período de uma produção historiográfica longa sobre a Inquisição, nós começamos a nos questionar a respeito do uso das fontes documentais.

Já em 1992, sem querer ser precursor desse processo, aqui na Paraíba, no encontro chamado América 92, que se realizou no Espaço Cultural, nós estivemos numa mesa de debate em que a professora Anita Novinsky era a debatedora principal, e nós já colocávamos ali algumas idéias sobre isso que está se tornando o nosso trabalho mais recente.

Nós dizíamos, por exemplo, que dentro do estudo da Inquisição existe um problema de fontes. Existe uma imensa dificuldade de fazer uma análise crítica do documento. E existe, principalmente, uma unicidade de fontes. Raros são os inquisitoriados, raras são as vítimas da Inquisição sobre as quais nós temos informações sólidas quanto à sua posição religiosa, quanto à sua possível heresia, fora do processo. Então ficamos restritos ao documento que a Inquisição nos legou. Eu chamei isso de ditadura do processo. A professora Anita Novinsky respondeu dizendo que só havia realmente uma fonte para estudar o Tribunal do Santo Ofício, que é o processo.

Hoje estamos assistindo exatamente a ascensão deste questionamento. Já naquele mesmo ano o professor Ronaldo Vainfas, professor fluminense, publicou um artigo num desses livros-compêndios que Anita organizou, em que ele questionava as fontes e o significado da análise básica sobre o Tribunal como uma monstruosidade.

Hoje, no limiar do novo milênio que se iniciará em 2001, estamos vendo os estudos sobre o Tribunal do Santo Ofício mudarem amplamente de significado. O maior desafio diante desta mudança é retornar o olhar sobre as fontes. Procurei trazer para vocês um exemplo de uma dessas fontes, que é uma tentativa de conhecermos essa ambigüidade e essa duplicidade sobre o Tribunal do Santo Ofício.

Antes farei duas observações sobre o artigo do professor Luiz Mott, há pouco citado.

Caro presidente Luiz Hugo: o excelente artigo do professor Luiz Mott pode receber duas pequenas observações para complementar o trabalho dele. Ele cita dois personagens históricos que pedem uma análise mais aprofundada. Na página 83, da Revista do Instituto Histórico, ele fala de Manuel Dias Carvalho, que hospedou o padre Gregório Martins Ferreira em 1654. Nos Apontamentos Biográficos do Clero Pernambucano consta Manuel Dias Carvalho em 1654 já como primeiro vigário da igreja de São Pedro Mártir, de Olinda. Isso permite uma análise aproximada. São Pedro Mártir, por quê? Mártir, porque era inquisidor. Ele foi assassinado pelos hereges que perseguia, no século XIII. Para a igreja de São Pedro Mártir, em princípio, segundo o próprio Bittencourt, colocavam-se pessoas que tinham muita aproximação com o Tribunal e que fossem bastante afinadas com os princípios da Inquisição. Então, este personagem ao mesmo tempo recebe em casa alguém que está sendo perseguido pelo Tribunal e, no entanto, está nomeado para a igreja de São Pedro Mártir. Vale então uma pesquisa mais aprofundada a respeito dele. Um outro é Francisco Pereira, cristão novo que aparece nas listagens de Mott nas páginas 86 e 87 e que tem um homônimo, ou ele mesmo também nos Apontamentos do Clero Pernambucano, que é um padre jesuíta expulso de Pernambuco em 1760, na leva de expulsão dos jesuítas por Pombal, e que poderia ser a mesma pessoa.

Para essas colocações eu me ponho à disposição do Instituto no sentido de encaminhá-las ao professor, sugerindo uma continuidade.

Retornando à nossa exposição, quero registrar que a Inquisição sempre aparece nos jornais, nas revistas, na televisão, na mídia, citada no meio de alguma notícia ou ela mesma como a notícia mais importante. E ela sempre aparece referida como um escárnio ou monstruosidade. O Tribunal da Inquisição tem os seus sinônimos que foram referidos recentemente numa matéria publicada no CORREIO DA PARAÍBA, dia 24 de outubro de 99, intitulada “Bruxas expressam a magia e a força interior femininas”. Lá para as tantas, fazendo uma observação, a repórter diz: “Ao pensar em uma bruxa, a imagem que se tem é daquela senhora voando em uma vassoura. Seria engraçado se não fosse tão sério. As pessoas não lembram da velha Inquisição, onde inúmeras vidas foram tiradas, muitas vezes sem se provar a culpa da vítima. Tempos longínquos de proibição em que a mulher deveria casar virgem, servir ao homem sempre com a disposição que lhe fosse possível”.

Essa afirmativa mostra uma expectativa que se tem sobre o estudo do Tribunal do Santo Ofício. Muitas vezes estuda-se o Tribunal em torno do seu sentido, como uma instituição que representa um anátema histórico e uma negação do seu próprio tempo. Vamos buscar a recolocação desse Tribunal através das suas origens mais distantes, mais longínquas. E aí nós buscamos fazer uma divisão do tempo, que serve para reformular essa visão um tanto maniqueísta.

Nós dividimos o tempo inquisitorial em duas fases. Uma fase vai da sua fundação ou das atividades inquisitoriais que se formam na Península Ibérica no final do século XV – a  sua fundação oficial é na década de 30 do século XVI – até 1640 e uma segunda fase vai de 1640 até a sua extinção em 1821. As duas fases nós buscamos dividir segundo conceitos. A primeira nós conceituamos como a fase da Pedagogia do Medo e a segunda nós conceituamos como a fase da Pedagogia do Desprezo.

Durante toda a primeira fase, que ocorre no século XVI e primeira metade do século XVII, a característica central, principal, que carrega o Tribunal do Santo Ofício é aquilo que Jean Dulumo chamou de “medo obsidional”. É um período, em toda a Europa, não só na Colônia brasileira, e não é exclusivo de nenhuma das nações, é um período – repito – que se desenvolve a idéia de que a qualquer momento poderia haver uma degeneração da civilização. Acreditava-se, por exemplo, no medo que se tinha do mouro invasor, que era um medo real, porque o mouro muitas vezes tentou chegar ao centro da Europa; acreditava-se no medo de bruxa, que era um medo muito viável nas expressões mágicas da cultura naquele momento; acreditava-se no medo do cristão novo, uma figura imponderável (o cristão novo é imponderável porque nunca se sabe o que ele será, ele não é só indefinido, mas é também inexorável, ele pode a qualquer momento judaizar alguém); então se acreditava também no medo do cristão novo; acreditava-se no medo das magias originais, anteriores à cultura da cristianização. Nesse período de medo obsidional, de sentimento de cerco, de uma civilização que se sente posta contra a parede e quase esmagada, nesse período o Tribunal do Santo Ofício foi o realizador, o efetivador de toda uma cultura de expectativas de que a modificação e a transformação do mundo ocorreriam com a regeneração da ortodoxia católica. Esse é o primeiro momento. Momento da Pedagogia do Medo.

O segundo momento nós chamamos de Pedagogia do Desprezo e nele vamos procurar esmiuçar mais o tema. Ele vai de 1640, na realização de um novo regimento, até 1821, após o período de reforma do Tribunal do Santo Ofício. Essa é a fase de reconstrução e de reformulação da intolerância do Tribunal. O que ocorre nessa fase nos interessa mais de perto porque é nela que se dá a transformação das expectativas que a sociedade tinha sobre o Tribunal. E é nessa fase que teria ocorrido, na Paraíba, ou pelo menos ocorre na tradição oral paraibana, o caso de Branca Dias, tão decantado.

Por três séculos os judeus não tiveram sossego em Portugal. O Tribunal do Santo Ofício da Santa Inquisição processou aproximadamente 52.000 infelizes. Destes, algo em torno de 41.000 devem ter sido judeus e cristãos-novos. Uma das bases de sustentação deste ato de intolerância está em trechos do próprio Livro Santo, interpretados pelos inquisidores como sendo uma ordem divina de perseguição aos infiéis judeus. Textos de Isaías e do Deuteronômio abasteciam os inquisidores.

Essa intolerância chegou ao Brasil. Aqui, fez vítimas e criou um ambiente de medo e denúncias. O estudo desse período passa pela análise da personagem Branca Dias. Há três Brancas. Uma delas já tem a existência histórica comprovada: viveu em Pernambuco e foi processada pela Inquisição como judaizante no século XVI. Há uma outra que teria vivido em Apipucos (hoje município do Recife), mas sem documentação comprobatória de sua existência. A Branca que nos interessa teria vivido em Gramame, Paraíba, no século XVIII.

Se Branca Dias não é comprovada historicamente, se ela não existiu historicamente e realmente ela não tem comprovação de existência ou qualquer documentação, nos interessa, no entanto, como um objeto básico de memória e como uma exposição essencial daquilo que a sociedade imagina como tendo sido o Tribunal do Santo Ofício. É memória no sentido aristotélico.

O momento é muito propício para debatê-la, pois a “nossa” Branca vai para nas telas de cinema em breve. No novo ciclo de crescimento do cinema brasileiro aparece o projeto do cineasta Davi Kulock e da roteirista Sílvia Lonh para um filme ficcional sobre Branca Dias. O filme deverá ser rodado no próximo ano.

Branca Dias é a “personagem” histórica – ainda que ficcional – mais controvertida da Paraíba. A biografia dela é repleta de fatos contundentes. Sua própria existência é posta em dúvida. Branca foi, segundo o “Livro de Branca”, de J. Abreu, uma judia vitimada pela Inquisição. Naquela época – século XVIII – os judeus viviam sob o terror da conversão forçada decretada desde o século XV, obrigando os “filhos de Israel” a se tornarem cristãos na marra. Até o Papa chegou a questionar tal obrigatoriedade, mas acabou se deixando levar pelas pressões do Império Português. Com a conversão, o judeu – que pensava se livrar da perseguição após ter se convertido – passava a ser tido como cristão-novo ou criptojudeu, ou seja, cristão nas aparências públicas, mas ainda judeu nos hábitos e no coração.

A história de Branca é paradigmática. Teria sido vítima da paixão anormal de um padre que desejava a judia a qualquer preço. Em nome do amor que tinha pelo noivo, também judeu, Branca resistiu a todas as pressões. A história é marcada pelos mitos que formam o imaginário da nossa gente. Tendo ou não ocorrido, sob a narrativa heróica está o mitologema mais caro da alma luso-brasileira: a “saudade do impossível”. Esta saudade conduz Branca ao embate suicida contra os inquisidores. Ela sabe que não poderá ter uma vida normal ao lado do seu amado. Sabe que poderá perder tudo para o confisco inquisitorial. Sabe que só lhe restará “lembrança do que TERIA SIDO a vida sem a Inquisição”. Mesmo assim, Branca não se entrega às pressões do padre... e morre queimada por causa de seu destemor.

Nós, brasileiros, buscamos este paradigma heróico em nós mesmos, nos nossos políticos, nos nossos artistas e até nos jogadores que representam o “país do futebol” na Copa do Mundo. Branca, tendo ou não existido, leva em si um pouco da nossa alma. Ou, para usar o termo científico forjado por Arnold Toynbee (um dos maiores historiadores deste século), Branca Dias diz muito do “espírito de uma época e de um povo”.

Branca teria sido a realização de uma das características do imaginário colonial brasileiro muito bem definidas pelo antropólogo francês Gilbert Durand. Ele diz que o nosso imaginário é composto de vários mitologemas e dois desses mitologemas vão nos interessar especificamente para o estudo da Inquisição.

Num deles ele coloca que a nossa cultura é caracterizada pela saudade do impossível; isso é realmente a nossa cara. Nesse mitologema haveria uma constante expectativa de retorno ou de realização daquilo que se sabe impossível. Ele vai no exemplo de S. Sebastião – sebastianismo – (não vou me alongar sobre ele, o rei que desapareceu e que deveria retornar) e tenta conhecer a alma brasileira e alma lusitana afirmando essa saudade do impossível como uma formulação essencial do Tribunal do Santo Ofício. O Tribunal é a realização do oposto essencial da noção de saudade do impossível. Não se tem saudade daquilo que é impossível se não houver a realização da impossibilidade. Nossa sociedade teria, no Tribunal do Santo Ofício, o realizador desta impossibilidade naquele período (século XVII/XVIII).

O Tribunal do Santo Ofício comporia então uma forma essencial de conhecimento da própria maneira de ser do brasileiro e do português e dos povos ibero-americanos, já que ele teria forjado na nossa cultura um dos seus pontos civilizadores essenciais.

E aí a gente entra por outra discussão, que é difícil de admitir e difícil de contextualizar. Porque como disse no começo da exposição, a idéia de Inquisição surge sempre para o debate e sempre que estou diante de um plenário, falando sobre Inquisição, eu imagino que expectativa o plenário tem sobre o tema. Que conceito anterior nós carregamos e sempre que foi possível captar. Aqui, naquele curso já mencionado, nós fizemos por escrito. As pessoas chegaram a escrever. Eu distribui um pequeno formulário perguntando às pessoas o que elas acreditavam o que fosse a Inquisição. Depois dos formulários prontos concluímos que, mesmo para aquelas pessoas, algumas alunos de história, o Tribunal não tinha uma explicação histórica essencial, não tinha uma explicação histórica factual, não tinha uma explicação histórica cabível. Por que? Porque aconteceria como uma imposição de um grupo diante do resto da sociedade.

Então, a visão durandiana de análise do imaginário permite que a gente comece a compreender aquilo que talvez nos seja difícil compreender. Que este Tribunal, sendo o que foi, intolerante, arrogante, engendrando o terror, como engendrou, foi parte da nossa civilização, foi parte daquilo que nós somos hoje; foi parte dos valores que geraram a nossa sociedade. Ao contextualizá-lo historicamente, ao trazê-lo de volta àquilo que é factível, nós fazemos o que Max Weber esclarece muito bem: não é possível analisar um objeto histórico, a não ser pela suposição de que ele, no momento  que ocorreu foi valor ativamente aceitável, no momento foi valor ativamente bom ou tido como correto. Isso é que é duro no Tribunal da Inquisição e na análise da Inquisição.

Aí é preciso fazer outras separações ou distinções: como membro dessa cultura herdeira do Tribunal, dentre outras tantas variáveis, mas também herdeira da Inquisição, e enquanto membros da fé cristã. Trata-se outro movimento difícil de realizar para poder chegar à análise do Tribunal, ele mesmo. Eu mesmo, como católico, desde o início foi difícil de manter-me na fé, que é de mim e da minha família, e ao mesmo tempo analisá-la no seu momento mais difícil, no seu momento de arrogância, no seu momento de imposição. Essa é outra distinção essencial de se fazer. É necessário que nós façamos, não que procuremos a neutralidade em relação ao objeto estudado, mas que procuremos a objetividade. Conhecê-lo objetivamente e de nada adiantaria, como coloca Petters, aumentá-lo na sua monstruosidade apenas para denegri-lo, porque, ao fazê-lo, estamos criando algo que não existiu.

Graças a essa análise durrandiana, da “saudade do impossível”, poderemos fazer algo que torne, para vocês, uma exposição mais interessante.

Deixamos de lado a análise de casos pontuais e buscamos a análise do documento histórico como base da mentalidade inquisitorial. Os processos deixam de ser o processo de João, o processo de José, o processo de Maria, mas o processo organizado e estruturado por determinado inquisidor ou por determinada mesa inquisitória.

De modo geral, a análise se limita a apanhar o livro falando de uma visão geral do Tribunal do Santo Ofício, depois faz alguns conceitos e em seguida faz estudos de casos. Francisco Bittencourt, autor desta obra essencial para o estudo do Tribunal do Santo Ofício, que ainda está um pouco desconhecida no Brasil, que acaba de chegar por importação – HISTÓRIA DA INQUISIÇÃO – PORTUGAL, ESPANHA E ITÁLIA –  fez toda a sua pesquisa com um grupo de 45 pesquisadores espalhados nos três países durante um período que soma dez anos de trabalho e, neste livro, realizou a análise do Tribunal sem analisar um único caso. Nós não chegamos a esse ponto, nós não radicalizamos tanto, mas vamos tentar passar para vocês o que seria uma análise simbólica do Tribunal, o que seria uma análise do imaginário do Tribunal, dele mesmo, não para aqueles que foram inquisitoriados.

Essa é uma idéia essencial. É muito fácil quando nós vamos falar do Tribunal do Santo Ofício, como faz, por exemplo, o próprio professor Mott, ir à análise dos números.  Encontramos, facilmente, na reação da platéia, aquela decepção com os números. Quantos foram inquisitoriados? 40, 50, na história do Tribunal na Paraíba? Quantos foram para a fogueira? (Um aluno da minha disciplina de Inquisição dizia que estava sentindo falta do churrasco, depois de ler o trabalho).

Quem afinal foi queimado? Quantos foram para a fogueira? Um? Talvez dois, se a gente levar em conta as informações da documentação que chega nesse Projeto Resgate. Será? Nos números, nas estatísticas, no valor dado ao que nós chamamos “estatística do sofrimento”, o Tribunal resume-se a um punhado de gente. Nós buscamos evitar esse reducionismo e partimos para a compreensão da sua simbologia e do seu significado.

O Tribunal era essencialmente um tribunal moderno, um tribunal do regime absoluto e da monarquia absoluta. A essência da mentalidade de um inquisidor era a soma entre a hierarquização da fé e a utilização hierárquica da fé, ou seja, o seu prestígio enquanto inquisidor, a política que rodeava esse jogo de prestígio e a efetivação dos mitos de pureza presentes no imaginário da cristandade muito antes da formação do próprio Tribunal.

Buscando, daqui e dacolá, nós chegamos, por exemplo, a algumas citações bíblicas, que eu vou reproduzir para vocês. E que eram utilizadas pelos inquisidores. Nem tudo que encontramos poderemos utilizar aqui hoje, porque consultando a co-orientadora da minha tese sobre as citações que gostaria de fazer, ela não concordou, informando que era contra o regulamento da feitura de teses. Mas concordou com as citações da Bíblia.  Essas citações bíblicas eram feitas pelos inquisidores. Eram feitas nos processos? Não.

Eram feitas nas correspondências dos inquisidores, pouco estudadas; eram feitas na documentação relatorial da Inquisição, essa muito menos estudada; eram feitas na visita que autoridades de outra instituição faziam. Por exemplo, alguém do Vice-reinado presente em Goa anotou a justificativa teológica apresentada por um inquisidor, isso também nunca foi levado em conta. O que ocorreu, realmente, nós devemos admitir, é que no momento em que se abriram os arquivos inquisitoriais no século passado e neste século, e agora na abertura dos arquivos do Vaticano, os historiadores se fixaram em casos.

Ainda um dia desse vi na ISTO É ou na VEJA alguém dizendo que os arquivos não tinham sido abertos. Mas na verdade, eles foram, só que a fila é muito grande e as exigências também. A fila está para o ano 2001. Se você chegar hoje no Vaticano e buscar uma pesquisa no arquivo a resposta que eles dão, pelo menos me deram por Internet, é para maio ou junho de 2001, e ainda exigem uma série de apetrechos técnicos e intelectuais de quem vai visitar. Por exemplo, o domínio absoluto do latim e do latim arcaico na pesquisa do documento.

Mas eles têm razão, senão vai alguém para lá que não sabe, e fica tomando o lugar de quem sabe. E além disso, eles aconselham (eu fui aconselhado) a ter uma carta de apresentação de alguém da Igreja. Melhor que antes, que nem uma carta de apresentação do Papa abria o arquivo. Houve uma evolução muito grande.

Qual a expectativa dos historiadores que estão indo ao arquivo do Vaticano, agora? Mais uma vez o estudo de casos. Bittencourt teria anunciado que vai com sua equipe para lá e deverá fazer a análise desses documentos, cujos códices nós vamos ter para revelar e que são documentos de ação do Tribunal fora dos processos.

Citarei, a seguir, alguns trechos bíblicos como origem do mitologema dessa hierarquização da fé. São trechos interpretados pelos inquisidores como facilitadores e justificadores da ação inquisitorial. Não estou dizendo que eles são; foram interpretados assim. O desejo de interpretar é de cada um.

Vejamos um desses trechos:

“(...) o Senhor espera o momento em que terá misericórdia de vós (filhos de Israel), e ele exaltará a sua glória, perdoando-vos, porque o Senhor é um Deus de eqüidade; ditosos todos os que esperam nele. (...) E (antes desse tempo feliz) o Senhor vos dará o pão da angústia e a água da tribulação; porém, (depois) fará com que nunca se afaste de ti o teu doutor; e os teus olhos estarão vendo sempre o teu mestre. E os teus ouvidos ouvirão a sua palavra, quando clamar atrás de ti (dizendo): Este é o caminho, andai por ele; e não declineis nem para a direita nem para a esquerda.” (Isaías, 30, 18 e 20 – 21)

Essa observação, feita por um inquisidor em sua correspondência, seria a justificativa da perseguição aos cristãos-novos, perseguição aos judeus e ele chega até a dizer, com mais ênfase, com mais determinação do que o próprio Tribunal, principalmente no século XVII que a Inquisição não deveria ficar restrita apenas aos que já se converteram. Porque vocês sabem que o Tribunal apenas agia sobre quem se convertia. Em teoria, o Tribunal tinha como princípio agir sobre cristãos. Aquele que é judeu, que não tem obrigação de respeitar as normas da cristandade ou do catolicismo, não teria, em teoria, a ação do Tribunal. Uma vez que ele se converteu, à força, por decreto, em poucos dias, então ele pode ser perseguido pelo Tribunal da Inquisição e a sua ortodoxia pode ser testada pela Inquisição. Esse inquisidor vai além e chega a dizer que o Tribunal fez pouco ao restringir-se a isso.

Numa outra dessas correspondências não se encontra o trecho, como se encontrou na anterior, apesar dos erros, mas se encontra a referência, e na referência modernizada, nessa nova tradução que os exegetas realizam da Bíblia, com uma edição já existente no Brasil, desde 1992/93, o outro trecho refere-se assim a um outro assunto semelhante. Vejamos o trecho:

Se o teu irmão, filho de tua mãe ou teu filho ou tua filha, ou tua mulher que repousa sobre o teu seio, ou o amigo a quem amas como à tua alma, te quiser persuadir, dizendo-te em segredo: Vamos, e sirvamos a deuses estranhos (...), não cedas ao que te diz, nem o ouças, nem teus olhos lhe perdoem (...), mas logo o matarás; seja a tua mão a primeira sobre ele, e depois todo o povo lhe ponha a mão. (...)Se ouvires alguns que dizem: Alguns filhos de Belial saírem do meio de ti, e perverteram os habitantes da sua cidade, e disseram: Vamos e sirvamos aos deuses estranhos, que vós não conheceis; informa-te com solicitude e diligência, e, averiguada a verdade do fato, se achares ser certo o que se disse, e que, efetivamente se cometeu tal abominação, imediatamente farás passar à espada os habitantes daquela cidade; e destruí-la-ás com tudo que há nela, até aos gados. Juntarás também no meio das suas praças todos os móveis que nela se acharem, e queimá-los-ás juntamente com a cidade, de maneira que consumas tudo em honra do Senhor teu Deus, e que seja um túmulo perpétuo, e não seja mais reedificada, e não se te pegará às mãos nada deste anátema, para que o Senhor aplaque a ira do seu furor, e se compadeça de ti (...).” (Deuteronômio, 13, 6-9 e 12-27. Grifos nossos.)

Essa busca de fundamentação dentro da Bíblia só não foi maior do que uma outra busca, da qual nós poderíamos falar mais detidamente se tivéssemos mais tempo, que é a busca de fundamentação em São Tomás de Aquino. Há outras fontes que demonstram esta influência até nos seminários da época.

Essas cartas entre inquisidores de tribunais paralelos, que trabalham no mesmo império, tinham que ter autorização dos superiores e teriam que ter uma autorização permanente para que elas fossem escritas e, possivelmente, elas fossem censuradas. Mas o fato é que maior do que a busca de embasamento bíblico para a intolerância religiosa foi a busca do embasamento em São Tomás de Aquino. Quando Tomás refere-se à mística, no sentido em que ela se origina dos místicos, não a mística cristã, ele, quando defende, fala de constrição em torno do Espírito Santo, da ligação do fiel cristão com as regras específicas da cristandade.

Vejamos uma outra citação da Bíblia, que é uma citação que vale uma interpretação:

E Balac, rei dos Moabitas, disse-lhe: Vem, e levar-te-ei a outro lugar, a ver se é do agrado de Deus que tu de lá amaldiçoes o povo de Israel. E, depois de o ter levado ao cimo do monte Fogor, que olha para o deserto, Balaão, o advinho, disse-lhe: Levanta-me aqui sete alares, e prepara outros tantos novilhos, e igual número de carneiros. Balac fez o que Balaão lhe dissera, e pôs um novilho e um carneiro sobre cada altar.” (Números, 23, 27-30)

Quando vi essa citação pela primeira vez fiquei bastante pensativo em torno dela, sobre o que ela podia significar. No meio de um processo similar surge a justificativa e a contextualização dessa citação na cabeça dos inquisidores. Talvez só na cabeça deles mesmos. O que é que eles buscam aqui? Eles pensam que os judeus, que o povo de Israel, só poderia ser vencido pela intervenção dos adivinhos, dos feiticeiros, dos mágicos, ou pela anuência de Deus.

Então, num processo ocorreria que uma feiticeira havia sido acusada de realizar o seu feitiço contra um judeu. Então o inquisidor interpretaria que contra um judeu podia. Esse é o significado da citação. Ele admite, cascavilha até encontrar algo que justificasse que contra um judeu, com a permissão de Deus, pode. Ela fez o que fez porque Deus permitiu. Ela fez o famoso feitiço que impede a realização do ato sexual. O homem fica incapacitado sexualmente, e que era um processo muito comum nos processos inquisitoriais e esse impedimento acusatório sobre ela teria sido fruto de uma paixão dela por ele, incontida, publicizada por ela mesma e não correspondida.

Uma vez que o Tribunal buscava, constantemente e com firmeza permanente. a base teológica e simbólica da sua ação, devemos concluir, de imediato, que ele não era aquele monstro que a gente imaginava. Porque a idéia de monstruosidade é a idéia que ocorre de uma forma absolutamente sem precedentes, sem contexto histórico. O monstro não se explica. Explica-se a intolerância, porque a gente começa a tentar conceituar cientificamente. Explica-se o autoritarismo, tentando conceituá-lo. Mas, o monstro, não. Quando você diz  “monstro”, fazemos escapar do seu meio, do seu tempo, da sua época e entregamos ele de volta ao seu passado.

Os processos subseqüentes que a gente analisa são processos com os quais a gente faz um paralelo e para os quais a gente está começando agora um projeto de pesquisa na universidade, chamado o “legado da inquisição”.

Esse projeto tenta comprovar o que estou afirmando. Não foi o monstro que deixou o legado e o legado está presente. E está presente onde? Então fomos atrás de processos que já estão conosco, que são da República Brasileira, em que delegados, juizes, promotores, falam frases que, quando são retiradas do seu contexto e comparadas com outras frases, dos inquisidores do século XVII, a similitude é grande.

Perguntar-se-á: qual dos dois é o inquisidor? Contra negros, contra índios, contra a religiosidade de origem africana, principalmente, no Brasil da década de 90 do século passado, das primeiras décadas deste século e até muito recentemente, realizou-se o retorno, realizou-se a busca no fundo do baú dos mesmos princípios inquisitoriais.

É o que acontece, por exemplo, com os negros da praça Sinimbu, em Maceió, cujo processo está nos chegando. Em 1928 foram mortos na rua, porque era coisa de negro, diz o delegado. É o que aconteceu com um indivíduo que se dizia Zé Pilintra, na década de 40. É o mito interior, a religiosidade afro-brasileira. Ele diz, eu sou o próprio Zé Pilintra. Foi preso, passou alguns anos preso, no Rio de Janeiro. Estas nuances de legado que permanecem, fazem com que a gente tenha muito cuidado ao admitir essa idéia de monstruosidade.

Na realidade, a Inquisição deixou marcas. Seu legado está até hoje nos valores da sociedade brasileira. Por exemplo: a recente queda do artigo que condenava a quiromancia no Código Penal Brasileiro é parte de uma longa história de perseguição e sofrimento.

Ao contrário do que possa parecer, aquela não foi uma lei inócua, que tenha deixado as práticas mágicas à vontade, sendo exercidas “à revelia da lei”. Pensemos nos milhares de vezes em que a polícia invadiu, destruiu e espalho terror nos terreiros de umbanda e candomblé. Isto não ocorreu na Idade Média. Aconteceu no Brasil até os anos sessenta, com ápice entre 1920 e 1950.

Talvez nossa memória seja curta. Quando o legislador colocou aquele artigo – e outro mais – no Código Penal, estava legalizando uma prática abusiva de intolerância e autoritarismo.

Esta é uma história que vem de longe. Desde o século XIII, as autoridades passaram a considerar bruxaria como coisa do diabo. Note-se que ainda não existiam feiticeiras no imaginário ocidental. A diferença entre a bruxa e a feiticeira está no fato de que a primeira utiliza-se de ervas e raízes para realizar as encomendas boas e más que se lhe fazem. Já a feiticeira – entidade surgida no século XV graças à imaginação de parte do clero católico – é uma sócia do demônio, tendo feito um pacto com o príncipe das trevas em pessoa. O pacto, em geral, passa pela sedução da feiticeira pelo “belzebu”...

As práticas religiosas que foram tidas como feitiçaria podem ter origem no “culto da lua”, “religião” anterior ao cristianismo e que predominava entre os bárbaros do antigo Império Romano do Ocidente.

No Brasil, as religiosidades africana e indígena foram tidas pelo colonizador como semelhantes à feitiçaria. E, realmente, a fusão destes mundos ocorreu durante a colonização.

Mas, a grande “caça às bruxas” não ocorreu na Idade Média. Começou após a Reforma Protestante, em plena Era Moderna. Entre 1580 e 1700 (grosso modo) milhares de homens e mulheres morreram nas mãos de inquisidores católicos e protestantes. Manuais de demonologia foram impressos aos milhares (um fenômeno impressionante para uma época em que a imprensa acabara de ser inventada!) Aqueles que discordaram desta onda de histeria foram ridicularizados e até processados.

Quando a onda arrefeceu, o século XVIII assistiu a uma mudança de mentalidade: lentamente, as práticas mágicas deixaram de inspirar medo e passaram a inspirar desprezo. “Coisa de ignorante”, diria um nobre. É esta a idéia predominante no Ocidente, hoje.

A Inquisição foi extinta em Portugal em 1821. Antes, porém, a Intendência de Polícia copiou boa parte dos princípios inquisitoriais em voga nos anos 80 do século XVIII. Foi por esta via que a lei chegou ao Brasil. O Brasil independente herdou a legislação portuguesa de costumes.

Após a República, já no século XX, aqueles ex-escravos empobrecidos andaram ferindo os ouvidos da gente branca e esnobe das classes abastadas com atabaques, ditos mandingueiros (coisas de índios?) e crendices desagradáveis para um país que se queria igual à França.

Resultado: a velha lei foi trazida de volta, para a infelicidade do lado mais fraco desta triste história. É daí que vem o famigerado artigo do Código Penal banido em 1998.

“Toda História é remorso”, disse Carlos Drumond de Andrade. Esta é uma história que deve ser relembrada. Aqui, relembramos umbandistas mortos, que foram dilacerados, difamados e queimados pela polícia de Maceió, numa noite do não tão distante 1928. Seu crime: reunir-se para cultuar “deuses africanos” num terreiro onde hoje existe a Praça Sinimbu. Quando vocês forem àquela bonita cidade, sugiro que parem na dita praça para observar e, quem sabe, orar. E ainda sugiro que seja uma oração de integração e união entre brasis diferentes e, ao mesmo tempo, já tão aproximados pelo sincretismo.

Mas, na tentativa de entender o Tribunal na sua contextualização, além de fazer uma análise voltada para esses mártires, como São Pedro Mártir, a que me referi anteriormente sobre o trabalho de Luiz Mott. Bittencourt fala em São Pedro D’Abués, que é um santo desconhecido entre nós.

D’Abués foi um mártir inquisidor, em Saragoza, na Espanha. A ele estou dedicando um estudo porque ele é, curiosamente, esquecido. Ele não está no Dicionário dos Santos do Vaticano. Há muitos Pedros. Ele foi assassinado em Saragoza, por judeus, dentro da catedral, segundo a tradição, morto com uma pancada na cabeça. Então ele foi tornado rapidamente, pelo povo, um objeto de louvação; formaram-se filas em torno da catedral e os judeus acusados de matá-lo foram processados e queimados.

Seus sabenitos foram pendurados dentro da catedral de Saragoza juntamente com as armas que teriam feito o crime e durante muito tempo as pessoas iam ver. Quando o Papa pediu para retirar os sabenitos, porque as famílias dos cristãos-novos solicitaram ao Papa a retirada dos sabenitos, porque era algo que denegria a imagem dos que tinham morrido, o imperador respondeu que não podia, porque se fizesse isso haveria uma revolta popular no local. Bittencourt, em torno desses mártires, tenta localizar uma série de iconografias.

Para encerrar nossa argumentação falarei de um desses símbolos, que Bittencourt busca conhecer e entender, que é muito representativo do Tribunal. Não havendo condições de exibi-lo com projeção, vocês poderão ver, mesmo de longe, este arco construído em Lisboa, possivelmente em madeira, no começo do século XVII e chamado Arco dos Inquisidores. É uma das representações fortes que serviriam para compreender o significado do Santo Ofício para as autoridades seculares, para o imperador Felipe III, que passou sob ele, e permitiriam aquela contextualização que evita a concepção da monstruosidade.

Nesse arco, em latim, liam-se várias frases que representam esta aproximação do Tribunal com o seu tempo. Consta que o rei parou para ler e comentou, não se diz o que. Havia a seguinte citação constantínica, do período de aproximação com o poder temporal:

 “Com este sinal vencerás, assim como as pombas e os simples. Oh, luz da luz, vieste, afinal, admirado através dos anos. Oh, verdadeira coroa (a do rei), que a tua própria cabeça machuca”.

A idéia de que a realização da intolerância religiosa é algo que machuca a cabeça do rei, ou seja, de que a decisão de perseguir, de cercear e até queimar é algo que machuca e gera a infelicidade daqueles que se vêem obrigados a essa tarefa difícil, foi essencial na construção do imaginário inquisitorial. E é este imaginário inquisitorial que nos faz compreender o Tribunal no seu contexto histórico e na sua ação, tanto no Brasil quanto em todo o império português, como uma instituição não apenas aceitável, mas considerada moralmente louvável pelas pessoas que viveram naquela época.

Com isto encerro minhas considerações sobre o tema.

· · ·

A fala do Presidente:

O professor Carlos André nos deu uma visão elevada do que foi a Inquisição, até justificando sua implantação por parte da Igreja, em face das circunstâncias do momento histórico do seu aparecimento.

No seu estilo de professor qualificado fez uma interpretação sociológica e psicológica, permitindo-nos uma nova conceituação sobre a existência do Tribunal do Santo Ofício. Fez o exame, a análise profunda de uma instituição  que teve sua época, de justificada presença em determinado momento.

Foi uma excelente colocação para nós, leigos na matéria, permitindo-nos vivenciarmos a Inquisição de ontem, examinada à luz de novos conceitos.

Agora passaremos a palavra à nossa debatedora professora Zilma Ferreira Pinto. Ela é formada em História pela Universidade Federal da Paraíba, com especialização em Didática, e pesquisadora permanente. Pertence ao Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica. Além de ser uma destacada genealogista, dedica-se ao folclore, com vários trabalhos publicados nessa área, alguns dos quais teatralizados.

Passo a palavra à professora Zilma Ferreira Pinto.

DebatedoraZilma Ferreira Pinto (Professora de História, sócia do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica, pesquisadora, e dedicada ao folclore)

Parabenizo o professor Carlos André por sua excelente exposição, que ouvi atentamente. Ao repassar algumas passagens da História, veio-me à mente a passagem de um poema de Hildeberto Barbosa, no qual ele conceitua a História como o calendário da miséria universal. Assim falou o poeta. Estaria de pleno acordo com ele se não tivesse uma perspectiva lírica da História. É assim que eu vejo a História. Numa dimensão lírica, na qual se desdobra o trágico e o épico. Quero dizer que nessa dimensão lírica é onde se impulsiona, é onde se realiza a História, onde se manifesta o sujeito histórico, que é também o seu objeto.

O homem nas suas aspirações, com as suas necessidades, suas carências. E nestas carências e necessidades nós vamos encontrar aquilo que o objeto principal dessa minha exposição, que é a família, a família que nasce dessa atração entre os dois opostos, que é o homem e a mulher. Sem essa fração, sem essa união, que uma manifestação do amor, não haveria o sujeito histórico, não haveria o suceder das gerações, então não teríamos humanidade e muito menos História.

Vejamos, portanto, as famílias da Paraíba na Inquisição.

A chegada aqui do Santo Ofício, em 1595, não teve muita repercussão porque a população era muito pequena, foram cerca de 16 denúncias e os casos mais interessantes foram de bigamia e sodomia, embora tivessem alguns casos judaizantes.

Passemos ao século XVIII, onde poderemos focalizar as famílias de judeus da Paraíba.

Posso mostrar-lhe um impresso, de autoria de Sérgio Maia, onde se vê a Capela do Engenho Santo André, e onde foram travadas renhidas batalhas contra os holandeses. Hoje existem apenas ruínas. O Engenho Santo André é hoje a usina de açúcar Santana, no município atual de Santa Rita, Paraíba.

Nesse Engenho Santo André viveu Clara Henriques da Fonseca, condenada pela Inquisição de Lisboa, em 17 de junho de 1731. Era mãe de Antônio da Fonseca Rego, morador no Engenho Velho, município de Santa Rita, condenado em 6 de julho de 1732. Antônio da Fonseca Rego casou com Maria de Valença, natural do Engenho do Meio, também na várzea do rio Paraíba, também condenada pela Inquisição de Lisboa em 17 de junho de 1731 e em 20 de julho de 1756 a cárcere e hábitos perpétuos sem remissão.

Foram dois processos. São os pais dele Joana Nunes da Fonseca, casada com João Soares Filgueira. O casal já era falecido em 1777. Residia na serra do Martins, Rio Grande do Norte, fugindo da Inquisição portuguesa. São pais dele Florência Nunes da Fonseca, casada com João Francisco Fernandes Pimenta. Abandonando o refúgio da serra do Martins, o casal foi residir em Catolé do Rocha, na Paraíba, no início do século XIX. Três filhas do casal casaram com dois filhos de Antônio Ferreira Maia. Cosma casou com Francisco Alves Maia, ela falecida em 2 de março de 1827, ele falecido em 5 de agosto de 1831. Damiana casou com Manoel Alves Ferreira Maia, foi sua primeira mulher e Maria, a terceira filha dos descendentes judeus, também casou com o cunhado, o viúvo Manoel Alves Ferreira Maia.

Grande parte da família Maia do Catolé do Rocha tem como herança o sangue dos hebreus, que se perpetua através dos tempos em todas as partes do globo terrestre. Américo Sérgio Maia, autor destes apontamentos a que agora me refiro, é descendente de Cosma e Damiana por parte de pai e parte de mãe.

Aí vocês vêem um depoimento muito bonito, que Sérgio Maia, de saudosa memória, leu aqui numa reunião do Instituto de Genealogia e Heráldica, do qual foi presidente e fundador.

Por aqui vocês vêem a dimensão lírica da História, o emocionante disso tudo, abrangendo um casal e toda uma família vítima da Inquisição, que foi levada para Lisboa e tiveram destinos trágicos.

Mas, a História continua. Quando falo nessa dimensão lírica é para realçar essa capacidade, essa potencialidade, a força que vem da própria vida, que nem a Inquisição, nem o nazismo, nem nenhum regime totalitário é capaz de matar. A vida continua devido a esse impulso lírico.

Vemos também, dentro da História da Paraíba, o deslocamento de famílias, de núcleos familiares daqui da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará para o interior, para o sertão. O que se deu juntamente no século XVIII no momento em que se intensificava o povoamento do sertão.

E como diz Sérgio Maia, em sua visão grandiosa, que é a continuidade da História do povo hebreu; não era só a história da Capitania, da história da Província, nem da história do Brasil, mas da história universal.

Neste auditório estão presentes vários descendentes dessa família numerosa, que solicito se levantarem para receberam nossas homenagens.

Conforme ficou acertado com o expositor, professor Carlos André, caberia a mim fazer alguns registros de famílias atingidas pela Inquisição, na Paraíba.

Assim, quero continuar falando sobre essa família ilustre da Paraíba.

Antônio da Fonseca Rego era filho de Clara Henriques, como vocês viram. Clara Henriques é uma figura que emociona quando a gente passa a vista no rol dos culpados registrados no livro de Anita Levinsky, porque ela emerge como a própria figura da máter dolorosa. Ela era uma senhora de 71 anos, uma matriarca, parente de todo mundo, porque esses cristãos-novos daqui da várzea da Paraíba eles constituíam uma grande família: os Fonseca, os Henriques, Nunes, Pereira, Chaves. Mas todos entrelaçados e descendentes de dois casais que remontam à época dos holandeses. De Ambrósio Vieira, casado com Joana do Rego, que por sinal se multiplicam essa Joana do Rego, de geração em geração e Diogo Nunes Tomaz, casado com Guiomar Nunes, que também tem outra seqüência de Guiomar Nunes.

 Pois bem, Clara Henrique morava no Engenho de Santo André, ali num sítio histórico, e ali toda essa comunidade se reunia. Se eles foram processados, não foram inocentes, porque eles realmente judaizavam. Nas suas reuniões celebravam seus sabás, os jejuns de expiação e todo o ritual do calendário judaico.

Clara Henriques foi uma grande figura e foi presa quando já era viúva; foi para Portugal e não voltou. Deve ter morrido. Antônio da Fonseca Rego foi acusado de judaísmo e feitiçaria. Maria de Valença, que foi processada duas vezes, na primeira foi levada para Portugal em 1731. Quando foi posta em liberdade não pôde voltar e foi acolhida numa casa de cristão-novos, por sinal na casa de um irmão do teatrólogo Antônio José da Silva. Como se sabe, naqueles interrogatórios da Inquisição a pressão era muito grande, e por conta disso ela denunciou o marido, e quando ele chegou lá denunciou o filho Simão, que deveria ter uns 15 anos. Simão depois se tornou um olheiro, um espião a serviço da Inquisição.

Eu pergunto, teria sido uma lavagem cerebral? Simão quando foi solto ficou abrigado na mesma casa onde a mãe estava e denunciou que ela estava preparando o jejum da expiação. Justamente quando estavam reunidos na casa de um cunhado, para iniciar o jejum, chega o pessoal da Inquisição e prende todo mundo. É esta a prisão de Clara pela segunda vez, que já não andava boa do juízo. O processo vai para Roma, demora sete anos para voltar para Lisboa, sem uma solução em face da sua doença mental. Como não soubessem o que fazer com ela, mandaram-na para Évora, sendo afinal libertada, tendo morrido na miséria, mendigando nas ruas de Évora.

Simão foi mandado para o Rio de Janeiro e durante a viagem endoideceu, e ficava dizendo que era judeu, talvez por remorso, retornando do Rio para Lisboa.

Tem também o processo de Luiz de Valença. Vamos ter notícia de Luiz de Valença porque ele compareceu no mesmo auto de fé do padre Malagrida, tendo morrido no cárcere.

Com esse relato vocês podem ter uma idéia do que significou a Inquisição na Paraíba. Outra família que também se tem notícia é a de João Inácio Cardoso Darão. Esse conseguiu fugir aqui das perseguições, foi para o Ceará e lá se casou com uma moça da família Alencar, em Barbalha. Depois volta e se refugia em Mari do Seixas, saindo de lá para Pombal. Era uma família de artesãos, que passaram a arte da ourivesaria para os filhos.

Era uma família pequena. João Inácio era casado com Catarina Liberato de Alencar. Deles descende o professor Inácio Tavares de Araújo e José Romero Araújo Cardoso, que é escritor e professor de Geografia em Mossoró. O interessante dessa família é que eles conservaram na memória familiar a sua ascendência judaica e conservam viva  na memória a história de Branca Dias, da Branca Dias da Paraíba..

Segundo o professor Inácio, na memória da família (não tem documento) João Inácio e Francisco se diziam que eram filhos de Simão Dias Cardoso de Araújo, morador no Engenho Velho, nas margens do Gramame. Ora, esse Simão Dias aqui da margem do Gramame é dado, embora não tenha documentação, como pai da própria Branca Dias. Estou apenas passando aquilo que colhi na família.

No rol de culpados de Anita Novinsky nós vamos encontrar um João Almeida, um Inácio Cardoso e um Pedro Cardoso, filhos de Francisco Cardoso. Mas esse Francisco Cardoso era o senhor do engenho, do Engenho Tibiri. Acredito que haja uma relação desses três com essa descendência de  João Inácio Como se vê, a história continua através da família, que é instituição legítima, primeira da sociedade.

No rol dos culpados de Anita Novinsky, vamos encontrar um Manoel Homem, cristão-novo, natural do Engenho das Tabocas e morador no Taipu. Viúvo, senhor de engenho, filho de Antônio de Figueiroa, lavrador de cana. Testemunha: Antônio Nunes Chaves, 12 de maio de 1732. E nada mais consta.

Mas acontece que no volume II, da NOBILIARQUIA PERNAMBUCANA, vamos encontrar o seguinte: e o sobredito, Manoel Homem de Figueiroa, que ainda vive em crescida idade, foi filho de Antônio de Figueiroa, que o era de Jorge Homem Pinto e de sua mulher D. Ana de Carvalho.

Na mesma fonte encontra-se que Antônio de Figueroa teria nascido em 1634 e Jorge Homem Pinto falecido em 1651. Poderíamos fazer uma relação entre esse número Homem constante do rol dos culpados com esse Manoel Homem citado por Borges da Fonseca (fica em aberto o assunto; trouxe-o apenas para ilustrar).

Manoel Homem foi casado com Margarida de Albuquerque, herdeira do Taipu. Dessa descendência se encaminha (faltam alguns zeros) para José Lins do Rego.

Esse é o Brasil dos 500 anos, o  Brasil das nossas raízes, porque não se pode fazer uma comemoração, escrever-se sobre a nossa história sem a história das nossas famílias, a história dos povoadores desses nossos municípios, porque eles é que realmente fizeram a história.

Outra família: Diogo Nunes Tomaz, esse é o segundo nome. Foi casado com D. Vitória Barbalha Bezerra, neta por via materna de Duarte Gomes da Silveira. Ele é um ramo do morgado. Como ela não mostrou arrependimento, foi queimada viva. Ela morava no Engenho Santo André, mas era pernambucana, tanto que lá é tida como heroína, e nós também, porque ela morava aqui. Ele era da vila de Serinhaém, e morador na Paraíba. Lá no rol dos culpados ele é dado sem ofício, já devia ser um homem idoso. Era pai de Diogo Nunes Tomaz, casado com Catarina Ferreira Barreto, que foi preso em 1729 e vemos, através de depoimento, porque não houve inventário, que ele era primo da morgada.

Tive uma dúvida, mas o consócio Guilherme d’Avila Lins, que é da família de Duarte da Silveira, mostrou-me um documento constante dum boletim do Gabinete de Estudinhos de Geografia e História da Paraíba que comprovam a filiação dela e a sua origem na árvore do morgado.

Da descendência dela, quem fez um trabalho interessante foi Aderaldo Pontes. Eu trouxe esse quadro genealógico como também um quadro dos troncos dessas famílias, os quais poderei distribuir cópia com os interessados, logo após o debate. Esses quadros vão constar dum trabalho que estou elaborando sobre cristãos-novos.

Continuando pensando no trágico da história, porque no trágico está o lírico e o épico, mas nessa dimensão maravilhosa, onde se encontra todo o impulso da vida, que faz com que a história continue e continuemos sonhando, vivendo e lutando por este Brasil, que assumamos nossas origens, assim como fez o professor Sérgio Maia, com tanta naturalidade, tanta beleza, porque esta mestiçagem que nós carregamos nos engrandece, mas também nos dá muita responsabilidade.

Todos nós aqui temos pingos dos cristãos-novos, mas carregamos uma civilização de seis milênios; nós temos nossa herança gótica, tudo isso trazido pelo português, português que já era um mestiço, que já trazia o sangue mouro, sangue judeu, o sangue celta e tudo isso nos foi transmitido, e mais a mestiçagem com o nosso índio e com o africano. Hoje nós somos senhores de uma cultura fabulosa, duma herança cultural que temos a responsabilidade e o dever de preservar.

Por isso que, na minha modéstia, nas minhas limitações, faço tudo para publicar uma história popular, uma história de trancoso, onde se transmite nossa história, como esta que está sendo encenada hoje. Uma história maliciosa que outra coisa não é senão a versão sertaneja ou da caatinga, que eu ouvi em minha terra, lá em Tacima, de Ali Babá e os 40 Ladrões.

Nós temos tanta coisa bonita da herança índia como da herança portuguesa, que é fabulosa. Amo muito a minha cultura ibérica e toda essa mestiçagem que faz do Brasil o Brasil do mulato, o Brasil do zambo, do mameluco, do cristão-novo, o Brasil do galego lá do cariri (onde há muita gente galega), esse Brasil maravilhoso.

Nesses 500 anos nós devemos celebrar a chegada das caravelas? Devemos, sim. Porque marca uma história, mesmo que tenha havido seis mil anos de história para trás, que tenham estado aqui muitas civilizações, como querem alguns, mas aquilo foi muito marcante, pois começou um novo período, e é desse período que nós descendemos. Do aventureiro, do degredado, do capitão-mor, do marujo, de todos estes que vieram trazendo a sua língua, a sua saudade, as suas cantigas, suas histórias, seus sonhos e o seu amor. Porque da união deles com as nossas caboclas, nossas cunhãs e depois com as sinhazinhas, estamos aqui, contando essa história.

1º participante:

Guilherme d’Avila Lins:

Esse tema da Inquisição, é um tema apaixonante; é um universo em que a gente se transporta sob qualquer ângulo que se queira abordar. Quando a gente analisa as denunciações e confissões da primeira visitação do Santo Ofício, sob a responsabilidade de Heitor Furtado de Mendoça,  a gente tem um retalho da história social da terra naquele período. Os costumes, as tendências religiosas, as desavenças, as brigas familiares, intrafamiliares e interfamiliares, são uma das coisas mais lindas que tenho como fonte direta; é como se estivesse assistindo a um filme daquele tempo. Portanto, é muito apaixonante para mim o tema da Inquisição sobre os mais variados aspectos.

O professor Carlos André falou aqui do terror. Sem dúvida, a Inquisição criava um terror também para aqueles que a esperavam ou não a queriam que chegasse. Teve uma passagem da nossa história, em que o protagonista era um filho de João Ramalho, que disse qualquer coisa semelhante a uma heresia e um padre jesuíta disse: cuidado com a Inquisição. Ele disse: Eu matarei a Inquisição a flechas. Ele realmente não tinha noção do que era a Inquisição. E só quem não sabia o que era a Inquisição poderia responder dessa forma.

Seis meses antes de a Inquisição chegar no Recife, o irmão mais importante da família dos Nunes, Henrique Correia Nunes, que vivia em Portugal, diz para João Nunes que se desfaça de tudo e saia do Brasil. Deve ter mandado uma carta semelhante para o Diogo Nunes, que foi senhor do segundo engenho da Capitania da Paraíba, o Engenho Santo André. João Nunes não pôde se desfazer porque a essa altura já tinha sido alcançado na Bahia sob um artigo para ir até lá ser testemunhas, mas na realidade ele caiu numa armadilha. Não é sem razão que ela possuía três seções inquisitoriais. A seção da profissão de fé, em que a pessoa mostrava suas convicções religiosas; a segunda seção era de genealogia, que tinha como base, independente do que ia acontecer na terceira, saber a tessitura familiar para alcançar aqueles que quisessem alcançar; e a terceira era para avaliar o crime cometido contra a Santa Madre Igreja. Havia confissões do que existiu e do que não existiu.

Tenho um livro sobre os instrumentos de tortura usados na Inquisição. Era uma coisa realmente fora do comum. É preciso ter uma cabeça muito patológica para inventar aqueles instrumentos.

Quando não se conseguia alcançar, por ventura, aquele que a Inquisição queria alcançar, o indivíduo ia ser relaxado em estátua. Fazia-se um boneco que levava o nome do infeliz para poder ser queimado.

A Inquisição causava um terror muito grande. A esse respeito tem um aspecto que tem passado despercebido aqui na Paraíba. O Tribunal do Santo Ofício da primeira visitação chegou à Paraíba e foi quase inócua. Tinha pouca gente, tinha um caso de bigamia, um caso interessantíssimo de bigamia, porque o marido e a mulher eram bígamos. É o cômico da história. Ele fez duas confissões porque a mulher já tinha feito e ele não sabia, e voltou para dizer que tinha se esquecido. E era uma figura importante. Era um alto funcionário da Fazenda Real, escrivão da Fazenda Pública, Antônio da Costa de Almeida.

Foram poucas as pessoas envolvidas, mas há um fato curiosíssimo. Fazia parte do Tribunal do Santo Ofício, que veio com Heitor Furtado de Mendoça, o frei Damião da Fonseca, abade do Mosteiro de São Bento de Olinda, a quem o governo da Paraíba estava pedindo para mandar frades para fundar conventos. E ele, se não me engano, era o presidente do Tribunal, nesta visitação. No mesmo dia em que aqui chegou, o presidente do Tribunal do Santo Ofício pede data de terra para fundar o convento. Quem é que não ia dar? Era de interesse e, agora, de obrigação.

E deu. O regimento mandava que o convento fosse fundado, para valer a doação, em dois anos. Mas quando os holandeses chegaram aqui em 1634, portanto muitos anos mais tarde, o lugar do convento de São Bento estava ainda em desenhado, em retângulo, segundo descreve Elias Herckmans em sua descrição da Capitania, em 1639. Só tinha a demarcação do terreno. Afinal de contas aquelas terras foram dadas a alguém que representava o maior terror da época, que era a Inquisição.

Não vejo na Paraíba nenhum caso que se viu  na Bahia, na mesma época, como de feitiçaria do tipo “rito da santidade”. Na Paraíba isso não aconteceu, como também em Pernambuco.

Fiquei imaginando porque a Inquisição na primeira visitação da Paraíba foi tão boazinha. Será porque houve o prêmio de consolação do terreno? É possível, porque ela não foi tão boazinha em Pernambuco.

Carlos André, em aparte:

Esses documentos não estão acessíveis, pelo menos não entravam quando fui aluno do Colégio em Olinda. Como ex-aluno, eu pedi e disseram que são documentos que, pelo período, não estão à disposição do público no Mosteiro de São Bento de Olinda. Eles têm a documentação, mas fica na segunda sala. A primeira sala é livre para o aluno, mas a segunda sala, não. Foi aí que começou meu interesse. O abade, que era meu professor de Teologia e Latim, se recusava a falar e comentar e pediu que não falassem mais no assunto. Dizem que hoje está mais liberal.

2º participante:

João Batista Barbosa:

Primeiro quero me congratular o professor Carlos André pela brilhante exposição. Quero fazer duas indagações. Primeiro, se a Inquisição durante todo o período de sua existência foi exercida única e exclusivamente pela igreja ou se o poder oficial, ou por delegação do Santo Ofício, ou por iniciativa própria exerceu também esse poder em alguma parte do mundo?

A segunda indagação. O professor classificou a Inquisição em dois períodos. Um até 1642, se não estou equivocado, e outro até o seu fim. Eu queria saber o que foi exatamente o que determinou essa diferença, essa divisão.

3º participante:

Monsenhor Eurivaldo Caldas Tavares:

Eu considero uma verdadeira audácia minha, depois de ter ouvido tão grandes mestres darem lições a todos nós, que eu, padre velho, já no final da carreira, ter a ousadia num auditório tão seleto pedir a palavra para dizer mais alguma coisa.

Mas, queria apenas a permissão dos nossos companheiros, particularmente aqui eu falo pelos que estão mais ou menos no meu nível, porquanto o estudo profundo do mestre Carlos André e aula de genealogia da minha confreira Zilma Pinto, do Instituto de Genealogia e Heráldica também esteve à altura.

Agora é um representante do clero, que não tenham medo, não é um representante do Tribunal da Inquisição, mas é um estudioso que, durante o tempo de Seminário e depois dos seus prolongados 55 anos de sacerdócio, tem realmente vontade de dizer umas palavrinhas numa linguagem do meu nível.

Algumas pessoas, essas eu tenho certeza porque confessaram a mim próprio, não sabiam coisa nenhuma a respeito da Inquisição. Os que foram felizardos em ouvir a exposição do mestre Carlos André, como do Seminário que realizou aqui em conjunto com o Instituto Histórico, já estão bem por dentro. Muitos diziam: por que essa história de Inquisição? Então me lembrei que tinha umas notinhas que tinha escritas, pedindo permissão para ler essas noções.

A tarefa da Inquisição era a de inquirir acerca da integridade da fé dos fiéis e se constituiu em Tribunal Eclesiástico destinado à vigilância da fé e ao combate à heresia.

Foi o Papa Gregório IX que, em 1231, estabeleceu o Tribunal, confiando às Ordens Religiosas Mendicantes, em especial, Dominicanos e Franciscanos o encargo de punir os hereges.

Quando num país suspeitava-se de heresia para lá se dirigia o Inquisidor com seus auxiliares para iniciar o processo. O processo caracterizava-se pelo rigoroso sigilo da informação, o que fazia com que o acusado desconhecesse seus acusadores; pela negação de defesa, excluindo a interveniência de advogado; e por último, pelo uso da tortura, quando o réu não confessava espontaneamente a culpa.

A sentença era proclamada solenemente perante o povo, a que se dava o nome de auto de fé. Após a leitura da mesma, era logo executada, sendo o inocente posto em liberdade e o culpado era obrigado a abjurar. 

Aos contumazes eram aplicadas  penas  como penitências, contribuição para obras pias; outras mais pesadas, como flagelação, prisão temporária, ou perpétua, ou ainda a mais grave, a pena de morte. Esta última não era pronunciada, nem aplicada pelo Tribunal da Inquisição, mas pelos juizes civis; a Igreja entregava então, o réu ao braço secular.

Foi sobretudo na Espanha que a Inquisição assumiu mais rigor e foi mais severa, no combate aos judeus e mouros. Foi então que se deixou converter em instrumento, muitas vezes, de perseguição religiosa-política, citando-se o exemplo do celebrado dominicano Thomás de Torquemada.

Os excessos cometidos pelos inquisidores, mesmo quando pressionados por multidões apaixonadas, por interesses baixos de cobiça, ou por ódio à heresia, não podem ser negados, nem muito menos, merecer defesa. Aliás as próprias características do processo que eram a negação da liberdade, atentavam contra a justiça e a caridade cristã, o que tornam indefensáveis os seus erros.

Por outro lado, a Inquisição precisa ser entendida, colocando-se a mesma no contexto da época. Com efeito o Código Penal vigente na Idade Média era por demais rigoroso, sendo comum a aplicação de torturas e a própria morte como castigo para impedir a repetição de crimes.

É de notar-se que, na época, os tribunais civis puniam com excessivo rigor certos vícios e crimes, como a sodomia, a bestialidade, as bruxarias, o adultério, a bigamia, o assassínio.

O Brasil nunca sediou propriamente um Tribunal de Inquisição, era sim sujeito à jurisdição do Tribunal de Lisboa. Este foi criado em 1536, pelo Papa Paulo III.

Sobre sua atuação no Brasil é interessante conhecer o depoimento do autor do livro A IGREJA NO BRASIL, de Arlindo Rupert, I volume.

Ele escreve à página 273: “Durante o século XVI, conforme notícias que temos, a Inquisição agiu discretamente; são conhecidos três processos e uma visita do Santo Ofício, tudo sem maiores conseqüências. Misturavam-se às vezes, fatos reais de índole religiosa, ou político social com faltas aparentes  ou supostas, interesses particulares ou tendências perniciosas no campo religioso e social. Houve certamente acusações fundamentadas e dignas de serem examinadas. Mas houve outras que nasciam mais da ingenuidade ou de antipatias pessoais. Ainda não foi examinado todo o acervo da documentação inquisitorial que traz, felizmente muitas notícias históricas de real valor. O Clero do Brasil no século XVI, excetuados alguns jesuítas e talvez algum bispo, mostrou-se pouco prestativo às exigências inquisitoriais, quase sempre moderado por ocasião de algum processo ou denunciação.”

Segundo o mesmo autor: “Pelo direito vigente, os Bispos eram, em suas dioceses, inquisidores da fé. Mas como no Brasil, além dos cristãos-velhos, havia já bom número de índios e escravos africanos convertidos, o Inquisidor-mor do Reino, Cardeal D. Henrique, a 12 de fevereiro de 1579 passa comissão ao Bispo D. Antônio Barreiros, com faculdade de inquisidor apostólico para que “possa conhecer das coisas que nas ditas partes do Brasil sucederem tocantes à Santa Inquisição, sendo as pessoas culpadas dos novamente convertidos somente e as determine com quais padres da Companhia de Jesus, que das ditas partes se acharem, especialmente, o Pe. Luiz da Grã, enquanto lá estiver.”

Tratava-se, como esclarece o texto citado, apenas de índios e negros convertidos à fé católica, aconselhando ao bispo e jesuítas que “usem nisso prudência cristã, moderação e respeito que se usa de todo o rigor do direito com os já convertidos”.

Deduz-se daqui que o Santo Ofício não era o que muitas vezes pintam os adversários da Igreja!...

E conclui Arlindo Rupert, à página 284, de seu livro: “Não obstante as falhas que se podem apontar contra todo e qualquer sistema repressivo, não é lícito nem honesto ver na atuação da Inquisição ou Santo Ofício somente a face negativa.”

Houve também vantagens para a fé e os bons costumes, evitando-se tolerâncias em demasia com desvantagens para a pureza da fé ou com tropeços dos mandamentos divinos, visto que a Inquisição não empregava somente a repressão, mas também a persuasão para corrigir desvios na fé ou nos costumes. Ademais para muita gente que se deixa levar mais pelo temor que pelo amor, por muitas causas que não é o caso abordar, toda ação coercitiva, quando psicologicamente bem orientada pode ter seus reflexos positivos. Aliás, o Santo Ofício, que era antes do mais um Tribunal Eclesiástico que tinha em mente mover o culpado a reconhecer seu pecado, detestá-lo e prometer emenda. Só em casos de pertinácia agia com penas que variavam segundo a gravidade do delito e a renúncia ao perdão.

No Brasil, felizmente, durante o século XVI, não temos a lamentar a pena capital entre os nascidos na terra, mesmo quando encaminhados ao Tribunal de Lisboa.

O livro DENUNCIAÇÕES E CONFISSÕES EM PERNAMBUCO – 1593-1595 de autoria do inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, reeditado pelo historiador José Antônio Gonçalves de Mello, constitui importante documentário contendo o teor inteiro de diversos autos de fé e revela um verdadeiro retrato dos hábitos, usos e costumes da população brasileira naquela época, bem como da vida sócio-econômica da Capitania de Pernambuco. Inclui confissões e denunciações relativas a Pernambuco, Itamaracá e Paraíba.

O original que trata do primeiro auto da Santa Inquisição que se celebrou na Capitania da Paraíba aos 8 dias de janeiro de 1595, refere textualmente:

 “No édito da fé dá o senhor visitador 15 dias de termo para de toda a dita Capitania da Paraíba virem perante ele denunciar o que por qualquer modo souberem que qualquer pessoa tenha dito, feito ou cometido contra nossa Santa Fé Católica e que tem a Santa Madre Igreja. E no édito da graça concede o dito senhor 15 dias de graça e perdão, para que, os que nele vierem de toda a dita Capitania da Paraíba perante ele confessar suas culpas e fazer delas inteira e verdadeira confissão, sejam recebidos com muita benignidade e não lhe dê pena corporal nem penitência pública, nem se lhes seqüestrem nem confisquem seus bens, como melhor e mais largamente se contém e declara nos ditos éditos”. (Obra citada, páginas 123 a 125).

Tais documentos autênticos contêm entre outras assinaturas, as do Inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, do Governador da Província, Feliciano Coelho de Carvalho, e do 1º Vigário da Paróquia de Nossa Senhora das Neves, o Padre João Vaz Salém. Registre-se, ainda, como curiosidade histórica, a existência na época, 1595, não só da Matriz das Neves, como ainda a Igreja da Misericórdia, de onde saiu solene procissão até a Igreja Matriz, dentro do ritual da instalação da Visitação Inquisitorial na Paraíba.


Carlos André Cavalcanti, para suas considerações finais:

Quero agradecer, inicialmente, pela colaboração que nos deu, à professora Zilma Ferreira Pinto, trazendo para esse debate o apoio  da Genealogia, que é uma ciência auxiliar da História. E ela deu uma excelente contribuição ao nosso debate. Agradeço também à contribuição do historiador Guilherme d’Avila Lins e, especialmente, a segura participação do Monsenhor Eurivaldo Caldas Tavares, que, sucintamente, traçou um perfil da Inquisição dentro da sua época.

Antes de responder às questões levantadas pelo Dr. João Batista Barbosa, gostarei de oferecer alguns subsídios à nossa exposição sobre como funcionava o processo da Inquisição.

O processo inquisitorial era bastante diferente do processo da justiça comum dos nossos dias. Tudo se iniciava por uma das três vias: (1) denunciações, (2) confissões ou (3) determinação da Mesa.

As denunciações eram feitas por qualquer pessoa que fosse ao Tribunal ou a algum representante dele para denunciar crime cometido por outra pessoa. Os crimes principais eram criptojudaísmo, conduta moral tida como pecaminosas e feitiçaria.

Quando o sujeito era preso por causa de uma denúncia, tinha que comparecer diante da Mesa Inquisitorial para ouvir o inquisidor pedir uma confissão. O preso nada sabia sobre o motivo da prisão, pois estava em vigor o princípio do “segredo da culpa”. Muitos resistiram em “confessar”. Alguns tinham noção da acusação de forma muito vaga, pois alguma maledicência de vizinhos ou amigos já lhe era conhecida. Mas a maioria não tinha noção do que se lhe esperava.

Assim, quando o desespero pela insólita situação levava a “confessar” mentiras, acabava por somar às culpas denunciadas por outrem, aquelas que ele mesmo estava comunicando de viva voz. Dificilmente poderia o réu acertar com o conteúdo da denúncia. Assim, o processo virava uma bola de neve.

Caso dramático foi o do cristão-novo Antônio José da Silva, O Judeu.

Chamava-se cristão-novo todo aquele que fosse acusado de praticar o judaísmo às escondidas. Mas, na verdade, a expressão tem origem nos fins do século XV, quando o governo português impôs a conversão ao catolicismo de todos os judeus que viviam no Reino. Após a conversão criou-se a estranha distinção: era tido por cristão-velho aquele cuja família não tivesse sangue judeu; já os novos cristãos passaram a ter a alcunha que não haviam escolhido.

No caso de O Judeu, houve imenso esforço para confessar aquilo que os homens de fé desejavam ouvir. Antônio José era teatrólogo. As luzes do século XVIII ainda não haviam aflorado. Seus versos de poeta brioso não tinham força para livrá-lo do cárcere. Em um desses versos O Judeu falava “da culpa de não ter culpa”, clara referência irônica à Santa Inquisição. Na noite em que foi queimado encenava-se em outro ponto da cidade um de suas peças.

Melhor sorte teve o maçom e jornalista Hipólito José da Costa. Sobre ele, tive a honra de proferir palestra na Grande Loja Maçônica de João Pessoa. Os maçons do Brasil orgulham-se deste colega antepassado.

Hipólito foi preso no penúltimo decênio de funcionamento da Inquisição. Eram os primeiros anos do século passado. Enfrentou destemidamente os interrogatórios, sem denunciar os colegas e sem admitir culpa no fato de pertencer a uma entidade livre. Hipólito esteve preso por anos em um cubículo frio e estreito. Conseguiu fugir da cadeia e chegar a Londres, onde se radicou e fundou o jornal Correio Brasiliense.

Retornando às perguntas do Dr. João Barbosa, posso esclarecer que na França, por exemplo, o ato inquisitorial era totalmente do Estado. Não havia tribunal eclesial. Em Portugal, no final do século XVIII e início do XIX, a Intendência de Polícia tomava atitudes tipicamente inquisitoriais. Mas, devemos admitir, a bem da verdade, que, no caso ibérico, a ação persecutória foi, essencialmente, do Tribunal do Santo Ofício. Veja bem: Não foi uma ação da Igreja como um todo, mas especificamente do Tribunal.

Quanto à classificação das duas fases da Inquisição moderna, ressalto que a mentalidade dos inquisidores diante do feitiço determinou a periodização que eu criei e utilizo. Até meados do século XVII prevaleceu o medo de bruxa. Após este momento foi se formando a idéia de que as feiticeiras eram apenas pessoas ignorantes, o que levou os homens da fé a terem desprezo por elas.
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A fala do Presidente:

Tivemos hoje uma movimentada sessão, em que o expositor, professor Carlos André, e debatedora oficial, professora Zilma Ferreira Pinto, nos colocaram a par do que foi a Inquisição do Santo Ofício no mundo, em geral, e na Paraíba, em particular.

A contribuição dos participantes Guilherme d’Avila Lins, João Batista Barrosa e, principalmente, do Monsenhor Eurivaldo Caldas Tavares, completou o objetivo do nosso Ciclo de Debates.

Ficamos esclarecidos sobre o conceito moderno daquela instituição, criada pela Igreja para defender a fé; analisamos a Inquisição contextualizada em sua época; repassamos o mito paraibano de Branca Dias; revimos a ação e o sofrimento dos cristãos-novos paraibanos; enfim, convivemos com os medos dos povos católicos dos séculos passados.


Agradeço, em nome do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, pelos importantes subsídios aqui trazidos à nossa historiografia, pelos participantes deste exitoso conclave.

SUGESTÃO DE LEITURA

INQUISIÇÃO - BRANCA DIAS
INQUISIÇÃO NA PARAÍBA

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