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sábado, 15 de junho de 2013

INQUISIÇÃO - BRANCA DIAS



Branca Dias foi uma descendente dos antigos judeus portugueses, que a memória regional identificava como uma cristã-nova vítima da ação do Tribunal da Inquisição entre os séculos XVII e XVIII.

Há três Brancas, explica o professor de história religiosa Carlos André. Uma delas já tem a existência histórica comprovada: viveu em Pernambuco e foi processada pela Inquisição como judaizante no século XVI. Há uma outra que teria vivido em Apipucos (hoje município do Recife), segundo a escritora pernambucana Joana Maria de Freitas Gamboa em o “drama histórico” “Branca Dias dos Apipucos”, cuja narrativa versava sobre uma rica cristã-nova, moradora perto do Recife, que teria sido presa pela Inquisição quando da Guerra dos Mascates (1710-1711), mas sem documentação comprobatória de sua existência. A Branca que nos interessa teria vivido em Gramame, Paraíba, no século XVIII.

Há ainda uma quarta Branca Dias. Esta teria nascido em Viana, no Minho em Portugal, que no final dos anos 1520, casou-se com um cristão-novo chama Diogo Fernandes. Denunciada pelo crime de judaísmo em 1540 por sua própria mãe e uma irmã, em face da pressão do Santo Ofício. Depois de confessada a culpa ficou presa durante cinco anos. Ao conseguir a liberdade, Branca Dias fugiu para o Brasil com seus filhos (3 meninos e 8 meninas) desembarcando na cidade do Recife onde seu marido em Olinda onde era comerciante de tecidos e senhor de engenho. (Dicionário Mulheres do Brasil - Maria Aparecida Schumaher, Érico Vital Brasil)

Se Branca Dias não é comprovada historicamente, se ela não existiu historicamente e realmente ela não tem comprovação de existência ou qualquer documentação, nos interessa, no entanto, como um objeto básico de memória e como uma exposição essencial daquilo que a sociedade imagina como tendo sido o Tribunal do Santo Ofício. É memória no sentido aristotélico.

 Branca Dias é a “personagem” histórica – ainda que ficcional – mais controvertida da Paraíba. A biografia dela é repleta de fatos contundentes. Sua própria existência é posta em dúvida. Branca foi, segundo o “Livro de Branca”, de J. Abreu, uma judia vitimada pela Inquisição. Naquela época – século XVIII – os judeus viviam sob o terror da conversão forçada decretada desde o século XV, obrigando os “filhos de Israel” a se tornarem cristãos na marra. Até o Papa chegou a questionar tal obrigatoriedade, mas acabou se deixando levar pelas pressões do Império Português. Com a conversão, o judeu – que pensava se livrar da perseguição após ter se convertido – passava a ser tido como cristão-novo ou criptojudeu, ou seja, cristão nas aparências públicas, mas ainda judeu nos hábitos e no coração.

A memória atual do ficcional caso de Branca Dias, na Paraíba, demonstra a força deste passado.


BRANCA DIAS


A história de Branca é paradigmática. Teria sido vítima da paixão anormal de um padre que desejava a judia a qualquer preço. Em nome do amor que tinha pelo noivo, também judeu, Branca resistiu a todas as pressões. A história é marcada pelos mitos que formam o imaginário da nossa gente. Tendo ou não ocorrido, sob a narrativa heróica está o mitologema mais caro da alma luso-brasileira: a “saudade do impossível”. Esta saudade conduz Branca ao embate suicida contra os inquisidores. Ela sabe que não poderá ter uma vida normal ao lado do seu amado. Sabe que poderá perder tudo para o confisco inquisitorial. Sabe que só lhe restará “lembrança do que TERIA SIDO a vida sem a Inquisição”. Mesmo assim, Branca não se entrega às pressões do padre... e morre queimada por causa de seu destemor.

Nós, brasileiros, buscamos este paradigma heróico em nós mesmos, nos nossos políticos, nos nossos artistas e até nos jogadores que representam o “país do futebol” na Copa do Mundo. Branca, tendo ou não existido, leva em si um pouco da nossa alma. Ou, para usar o termo científico forjado por Arnold Toynbee (um dos maiores historiadores deste século), Branca Dias diz muito do “espírito de uma época e de um povo”.

Este esforço intelectual pela elaboração de um panteão de heróis especificamente paraibanos podia ser encontrado, inclusive, em discursos de políticos. Pinheiro menciona conferência proferida pelo presidente do estado, Castro Pinto, no Rio de Janeiro, por ocasião  da comemoração do aniversário da cidade da Paraíba do Norte em 05 de agosto de 1920. No discurso ele afirma que:

“A qualidade fundamental que encontro no povo parahybano é a vontade  heróica, a firmeza de caracter, a inflexibilidade na linha de conducta, o saber querer para agir com acerto, a consciência do dever norteando os seus actos de vida (...); sirvo-me [para provar a tese] dos grandes nomes  representativos da evolução da Parahyba, desde os primórdios do povoamento até hoje.” (apud Ferreira, 2002, p.165).

 Dentre os inúmeros nomes que cita, a exemplo de Branca Dias, José Peregrino de Carvalho, Antonio Borges da Fonseca, D.Vital, Manuel de Arruda Câmara, Epitácio Pessoa, e outros, o presidente Castro Pinto destaca André Vidal de Negreiros, que, segundo ele, fora superior a todos os heróis de sua época.

Branca teria sido a realização de uma das características do imaginário colonial brasileiro muito bem definidas pelo antropólogo francês Gilbert Durand. Ele diz que o nosso imaginário é composto de vários mitologemas e dois desses mitologemas vão nos interessar especificamente para o estudo da Inquisição.

 O professor Carlos André em palestra proferida no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, falando sobre as famílias descendentes de judeus que aqui na Paraíba viveram, destaca os membros da família de João Inácio Cardoso Darão. Esse, segundo o professor, conseguiu fugir aqui das perseguições, foi para o Ceará e lá se casou com uma moça da família Alencar, em Barbalha. Depois volta e se refugia em Mari do Seixas, saindo de lá para Pombal. Era uma família de artesãos, que passaram a arte da ourivesaria para os filhos.

Era uma família pequena. João Inácio era casado com Catarina Liberato de Alencar. Deles descende o professor Inácio Tavares de Araújo e José Romero Araújo Cardoso, que é escritor e professor de Geografia em Mossoró. O interessante dessa família é que eles conservaram na memória familiar a sua ascendência judaica e conservam viva  na memória a história de Branca Dias, da Branca Dias da Paraíba.

Segundo o professor Inácio, na memória da família (não tem documento) João Inácio e Francisco se diziam que eram filhos de Simão Dias Cardoso de Araújo, morador no Engenho Velho, nas margens do Gramame. Ora, esse Simão Dias aqui da margem do Gramame é dado, embora não tenha documentação, como pai da própria Branca Dias. Estou apenas passando aquilo que colhi na família.

Outro paraibano ilustre que defende a cidadania paraibana de Branca Dias é o Irineu Ceciliano Pereira da Costa, da cidade de Pocinhos e aluno do padre Rolim  em Cajazeiras, tendo mais tarde mudado o seu nome para Irineu Jofily.

Irineu Jofily foi promotor público em São João do Cariri (1867), Juiz de Direito de Campina Grande, Deputado provincial pelo Partido Liberal, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Jornalista (A Gazeta do Sertão), deputado geral em 1889, cuja posse foi impedida pela Proclamação da República voltando para Campina Grande no mesmo anos onde acompanhou as definições dos limites do território paraibano.

Irineu Jofily em seus escritos afirma que a tradição nos diz que Branca Dias, de alta posição na sociedade colonial pela ilustre família a que pertencia e pela opulência em que vivia no seu engenho próximo a cidade da Parahyba, o que contrastando com o seu miserando fim, resultado da perseguição que lhe moveu o terrível Tribunal, influiu de tal modo na imaginação popular, que o seu nome tem atravessado três séculos.

Outro artigo de Irineu sobre o tema foi publicado no jornal A União, em 24 de agosto de 1901. Neste texto, Joffily lembra os gracejos que ouvira, quando estudante de Direito no Recife, dos colegas de outras províncias:

“Há quarenta anos, pouco mais ou menos, quando fazia o meu curso de preparatórios na cidade do Recife, ouvia freqüentemente entre os colegas, e em reuniões familiares, pronunciar o nome de Branca Dias, célebre paraibana de raça judia e vítima da inquisição. „A Paraíba é a terra de Branca Dias, os paraibanos descendem de judeu, não comem toucinho, etc., dizia-se geralmente nessas ocasiões, pilheriando com os filhos desta terra (JOFFILY, I., 1977: 445)”.

 No mesmo artigo, Joffily escreve: “Desde tenra idade que ouço falar nessa célebre mulher [Branca Dias] e tão célebre que o seu ruidoso processo e deplorável fim nas fogueiras do Santo Ofício, deu lugar que os paraibanos seus patrícios ficassem suspeitos de judaísmo pelos habitantes das capitanias vizinhas (JOFFILY, I., 1977: 177)”.

O bacharel afirma que “a curiosidade e o interesse que me desperta o assunto, obriga-me a encará-lo com o fim de convidar a quem quer que o possa esclarecer, a vir a público JOFFILY, I., 1977: 177)”.

Quatro anos depois, no jornal A União, Joffily recuperava o convite e transcrevia a única resposta obtida após o primeiro apelo, do Cônego Bernardo de Carvalho Andrade:

“Li no „Commercio de Pernambuco de 21 de março findo seu bem lançado artigo sobre a célebre Branca Dias, e muito agradeço a fineza de mo ter enviado, porque seria por mim ignorado, desde que não assino aquele periódico.

“Pouco adiantarei ao que sabe o meu amigo da história da célebre heroína paraibana, pois jamais pude obter documento escrito que se referisse à vida e fim trágico que teve. Mas, ainda que ao nome dessa paraibana célebre ligue o preconceito popular um histórico fabuloso e fatídico que não traz a luz precisa à sua biografia, não se pode pôr em dúvida ter ela existido na Paraíba, pois disto dão testemunho o território e as ruínas do engenho que lhe pertenceu, e onde residiu.

“Até o ano de 1880, quando o meu caro amigo tomava assento na Assembléia daquela Província, hoje Estado, era aquela propriedade respeitada de tal sorte pelo povo ignaro, que dela não cortavam sequer uma tabica para açoitar cavalos, por terem por malditos os próprios matos que ali vegetavam, e se alguém mais desabusado atrevia-se a fazê-lo, os demais vaticinavam a morte dele ou do cavalo, que se morressem de velho seria a morte sempre atribuída à imprudência de se ter servido da tabica daqueles matos.

“Depois do ano memorável de 1877 projetei mudar-me do Sertão por causa do flagelo da seca, e amigos nossos da capital procuravam convencer-me que seria de vantagem minha colocação naquela zona próxima ao litoral.

“Um desses amigos, o Tenente João Pinto de Vasconcellos, que então vivia e era senhor de propriedade que pertencera à heroína de que se ocupa, ma ofereceu por venda, que não se realizou por não assentar a mulher do mesmo Pinto, que a houve por herança de antepassados.

“Não visitei aquela propriedade por não ter efetuado a compra, mas sei que é situada à margem do Rio Gramame, ao S. da capital da Paraíba, não longe da foz do mesmo rio. Sei mais que são bem visíveis os destroços das edificações que ali existiam e que o preconceito dos ignorantes não tem servido de inteira garantia à propriedade, porque os poucos escrupulosos se têm apossado de parte de seus terrenos.

“O finado Comendador Dr. Lindolpho José Correia das Neves, de talento tão robusto e cultivado, que faz honra à terra aonde nasceu, sabendo que eu pretendia comprar aquela propriedade me garantiu ser de ótimos terrenos para a agricultura, e que se conservava coberta de matos. Seu espírito ativo e aguçado a criticar com jocosidade, não perdeu o ensejo de dizer-me: - „Espera por certo encontrar o terreno de Branca Dias, pois de outro modo não se explicaria pretender V. comprar aquela propriedade inculta e sazonática. Não duvido que alguns dos seus descendentes desconhecidos entre o povo e depositários do segredo lho tenham revelado. Não haverá entre os de sua família alguém daquela procedência?

“Isto motivou larga conversação sobre o assunto, dizendo-me ter visto notas sobre o auto-de-fé daquela notável paraibana, notável não somente pela origem de sua ascendência, de quem houve a grande fortuna que possuia, como pelo faustoso e principesco tratamento que ostentava (JOFFILY, I.,1977: 445-447)”.

Ignoraria o nome do engenho visitado pelo cônego Bernardo, não fossem as pistas dadas por Zilma Pinto. A propriedade era o Engenho Velho, e a mulher do tenente Vasconcelos, Alminda Manoelita Cavalcanti d’Albuquerque.

Existe a hipótese, aventada pela autora, de que este engenho tenha sido levantado no século XVI por certo Jorge Thomas, “senhor do distrito de Gramame”. Há um Jorge Thomaz (ou Thomas) Pinto cristão-novo, depoente na visitação inquisitorial de 1591-5, a primeira que o Santo Ofício delegou à América Portuguesa.

Zilma Pinto arrisca, portanto, que o engenho Velho foi criado e habitado por cristãos-novos desde o século XVI (PINTO, 2006: 164-165)
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Porque relacionada à história da Inquisição na capitania, a Branca Dias paraibana engendra uma questão histórica: a presença cristã-nova na região e sua relação com a suposta mártir local. Escrita no século XIX, embora só publicada na íntegra em 1912, a História da Província da Parahyba, de Maximiano Lopes Machado, talvez seja um dos primeiros livros de história escritos na Paraíba que trata da lenda de Branca Dias.

 No quarto capítulo do tomo II, Machado discorre sobre as “fogueiras da Inquisição [que vieram] agravar ainda mais a sua sorte [da Paraíba]” na época colonial. Sob orientação do bispo do Rio de Janeiro e delegado do Santo Ofício, D. Frei Francisco de São Jerônimo, “os familiares [do tribunal] se poseram em  O Tribunal do Santo Ofício de Lisboa – ao qual o Brasil era subordinado – realizou pelo menos três “visitações” a partes da América Portuguesa: a Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba (1591-1595), à Bahia (1618-1620) e ao Grão-Pará e Maranhão (1763-1769).

Os documentos sobre o casal de proprietários do engenho em 1877, citados pela autora, estão no Arquivo da Catedral Basílica da Paraíba.

Paraibano nascido em 1821, Maximiano Machado, assim como Joffily, também cursou Direito em Pernambuco. Depois de formado, exerceu cargos de magistratura e delegacia, se envolveu na Revolução Praieira – teve de se esconder até a decretação da anistia dos revoltosos, em 1851 –, chefiou o Partido Liberal em Campina Grande nos anos 1850 e foi deputado provincial na Paraíba entre 1858 e 1861. Maximiano Machado ocupou o cargo de orador do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. Faleceu em 1895.

Diz Maximiano Machado que “A Parahyba foi uma das [capitanias] mais tributadas neste gênero de imposição ao tremendo tribunal. Sem averiguações [...] foram arrancadas dos braços das famílias e da pátria, de 1731 em diante, as seguintes pessoas [...]

(MACHADO, 1912: 427)”. Em três páginas, com base na pesquisa de Varnhagen – paradigma da historiografia brasileira no século XIX – sobre os “brasileiros” condenados pela Inquisição lusa, Maximiano Machado cita os habitantes da Paraíba vítimas do Santo Ofício, de 1731 em diante. Mas, quanto a outros nomes que, supõe o autor, se perderam na história, um é digno de menção pelo bacharel:

“Se não desapareceu com as listas, é bem provável que á este arbítrio [o autor se refere ao fato de que os nomes dos penitenciados que saíam em autos-de-fé privados não constavam nas listas] se deva a omissão do nome da formosa e gentil donzella Branca Dias, que a tradição de mais de um século refere como sendo arrebatada aos desoito annos de edade do regaço materno para ser arremeçada aos carceres negros dos Estáus em Lisboa. Não lhe valeram formosura, innocencia, família, lagrimas, nem a consternação d‟estranhos, para desapparecer, depois do supplicio da corda, na fogueira expurgatoria da Inquisição, como as duas infelizes relaxadas em carne, Guiomar Nunes e Isabel Henriques! Quaes seriam as culpas de Branca Dias naquella edade de innocencia e de amor? Não se sabe, porque os processos da justiça eram feitos de conformidade com a sentença que se pretendia dar” (MACHADO, 1912: 430-1).

Guiomar Nunes, relaxada em carne, é uma das “pernambucanas ilustres” que Henrique Capitolino Pereira de Mello insere em seu livro sobre as heroínas pernambucanas (MELLO, H., 1980). Natural de Pernambuco, moradora no engenho de Santo André, na Paraíba, casada com o latoeiro Francisco Pereira, Guiomar foi condenada como convicta, negativa e pertinaz no crime de judaísmo, sendo relaxada ao braço secular no auto-de-fé de 17 de junho de 1731. Isabel Henriques, cristã-nova solteira, de 41 anos, natural de Portugal e moradora no engenho Velho – o mesmo engenho que, conforme o testemunho do cônego Bernardo, o povo acreditava ter sido a morada de Branca Dias na Paraíba –, foi condenada a cárcere e hábito penitencial perpétuo, e não relaxada em carne, como quer Machado. (Crítica de FERNANDO GIL PORTELA VIEIRA)

 Ainda assim, são duas personagens históricas que marcam a história da ação inquisitorial na Paraíba no século XVIII (MACHADO, 1912: 427-8; MELLO, H., 1980: 113-114; NOVINSKY, 2002: 228).

O crítico Fernando Gil Portela Vieira prossegue nos seguintes termos: “Mas é a forma pela qual Machado se refere à figura de Branca Dias que impressiona. Seu livro também não fornece respostas documentais sobre a existência da personagem. Pelo contrário, Branca Dias é tratada de modo bem romântico – “donzela”, “formosa”, “gentil”, cheia de “inocência” e “amor”. Qualidades que, se compartilhadas pelos demais paraibanos, faria qualquer suposto descendente da conversa se orgulhar de antepassada tão virtuosa. Ao afirmar que a tradição sobre a morte de Branca Dias pela  Inquisição é de “mais de um século” – o que, na pior das hipóteses (a partir do ano da morte do autor, 1895), remonta até pelo menos o final do século XVIII –, o livro de  Machado também descarta a possibilidade de a lenda ser criação literária. Vivia na memória dos paraibanos e, como toda memória, tinha um aspecto presencial. A personagem continuava presente na região, mesmo tanto tempo depois de seu suposto martírio.”

É o que se depreende da questão proposta por Joffily no Commercio de Pernambuco: “Diz-se que uma das mais distintas famílias da Paraíba é descendente de BRANCA DIAS. Será exato? Pergunta Fernando Gil Portela Vieira.

 A historiografia tem destacado a participação dos cristãos-novos na colonização da Paraíba, para além das primeiras etapas de povoamento, no século XVI. É certo que da conquista da capitania participou o cristão-novo João Nunes, tido como o “tesoureiro” da comunidade de cristãos-novos de Olinda. Nunes e seu irmão, Diogo Nunes Correia, construíram quatro engenhos na Paraíba; Diogo, aliás, morava na capitania. Fernanda Lustosa destaca o comportamento, mais que “judaizante”, crítico da religião católica e de seus dogmas, manifestado pelos conversos paraibanos ainda no século XVI (LUSTOSA, in GORENSTEIN; CARNEIRO, 2002: 134-137; FEITLER, 2003: 29; 150-152).

Argumenta Fernando Gil que o grupo de cristãos-novos judaizantes que persistia na lei mosaica aqui na Parahyba, foi desbaratado a partir de 1726, quando uma primitiva denúncia levou à prisão de cinqüenta pessoas, duas das quais morreram na fogueira – uma delas, Guiomar Nunes – e oito pereceram no cárcere (LUSTOSA, in GORENSTEIN; CARNEIRO, 2002: 139-143). Nenhum destes presos, porém, foi a “gentil donzela” Branca Dias da tradição paraibana.

A perseguição aos cristãos-novos judaizantes da Paraíba no século XVIII é que situou a personagem Branca Dias naquela centúria. O histórico deste grupo é a principal evidência explicativa da datação apontada por Machado para a prisão de Branca Dias, em meio aos conversos presos nos Setecentos. É necessário, a propósito, destacar dois pontos: o caminho que Irineu Joffily propunha para provar a existência de Branca Dias na Paraíba e a explicação para o fato de o bacharel, em meio ao turbilhão das atividades políticas e jornalísticas, fazer da busca de Branca Dias uma verdadeira meta paraibana.

A razão do primeiro ponto está no valor tributado por Joffily à história como meio legítimo de conhecer o passado. Se Irineu acreditava que Branca Dias realmente existira e vivera na Paraíba, isto não o demitia da obrigação de provar a realidade desta personagem. Para isso, só haveria um caminho: que fossem empreendidos estudos históricos em seu Estado. No artigo publicado no Commercio de Pernambuco em 1897, Joffily acatava a necessidade de uma pesquisa nos arquivos da Inquisição em Lisboa para investigar o assunto. Esta é uma realidade válida ainda hoje para os pesquisadores do Santo Ofício. Mesmo o estudo de um único processado pelo tribunal da fé residente no Brasil requer a pesquisa nos acervos da Torre do Tombo. Como afirma Ronaldo Vainfas, “Estudar a fundo a Inquisição portuguesa, seja sua atuação no Brasil, seja noutras partes, é tarefa que exige visita ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa (TAVARES et alii, 2005).

Se hoje, com o número extenso de pesquisas realizadas nos arquivos inquisitoriais, esta necessidade continua insuperável, quanto mais em fins do século XIX. No artigo citado acima, Joffily relata a ajuda que pedira ao historiador pernambucano Francisco Augusto Pereira da Costa. Em artigo publicado na Revista do Instituto Arqueológico de Pernambuco, Costa havia mencionado o nome de todas as vítimas da Inquisição em Pernambuco conhecidas àquela altura. Uma destas vítimas era filha de certa Branca Dias. Irineu – vemo-lo leitor de publicações historiográficas –, intrigado com a questão, escrevera a Costa pedindo esclarecimentos sobre quem era esta Branca Dias. O pernambucano respondeu:

“O fato que refiro no meu trabalho, da prisão de Brites Fernandes, filha de Diogo Fernandes e de Branca Dias, que teve lugar em Pernambuco, em 1601, é referido por Borges da Fonseca na sua Nobiliarquia, mas com relação especial a BRANCA DIAS, o que sei, consta de uma tradição muito vulgar entre nós e já com foros de cidade [sic] por mais de uma publicação e eu mesmo já utilizei dela em um livrinho que publiquei em 1884, o Mosaico Pernambucano (...) [Costa faz uma referência que intriga Joffily:]

BRANCA DIAS seguiu para Portugal e lá morreu nas fogueiras da Inquisição de cujo auto de fé existe um quadro no Convento de São Francisco na cidade da Paraíba (RIHGB, 1966: 178.

Pereira da Costa diz acreditar que essa Branca Dias fosse realmente a mãe de Brites Fernandes e mulher de Diogo Fernandes – hipótese que seria comprovada no século XX por historiadores como Gonsalves de Mello (MELLO, G., 1996,  especialmente a parte dedicada ao casal de cristãos-novos Diogo Fernandes e Branca Dias) –, o qual, feitor do engenho de Camaragibe, poderia ter comprado um engenho nas terras de Apipucos, junto ao riacho da Prata, que seria, segundo o historiador, o engenho Dois Irmãos (RIHGB, 1966: 179). Irineu, todavia, objetou que só o fato de existir um quadro do auto-de-fé de Branca Dias no Convento de São Francisco, na Paraíba, mostrava que a vítima era paraibana, não pernambucana.

Este era um dos motivos para situar Branca Dias na Paraíba; os outros, a tradição popular no Estado, as piadas que Irineu ouvira na faculdade no Recife e nas conversas familiares... Não faltavam razões para supor que Branca Dias fosse paraibana. Ou melhor, faltava uma: encontrar um documento que o comprovasse.

Irineu adotará uma postura bem mais incisiva quanto à pesquisa histórica sobre Branca Dias quatro anos depois, no jornal A União. Neste texto, após reproduzir a carta do cônego Bernardo (transcrita acima), o bacharel escreve: “O estudo de um fato histórico vale por si só muito mais do que todas as efêmeras produções literárias [...] semelhantes a essas nuvens róseo-douradas do fim do dia, que um momento alegram a vista e logo desaparecem nas trevas da noite (JOFFILY, I., 1977: 447)”. Não poderia ser mais clara a referência a romances, peças, contos, enfim, textos ficcionais, que, se romanceavam a trajetória de personagens históricas, sublimavam a pesquisa documental. Tendo em vista o contato com historiadores do Nordeste, como Pereira da Costa, e a carreira de magistrado – a mesma de seus contemporâneos Henrique Pereira de Mello e Maximiano Machado, membros do Instituto Arqueológico e Histórico pernambucano (MELLO, H., 1980: s/p) – não terá sido impossível que Joffily tivesse um contato com algumas obras ficcionais sobre a cristã-nova Branca Dias.

De todo modo, Irineu descarta a literatura para elucidar o problema da existência de Branca Dias na Paraíba. Os contos e as estórias ouvidas até ali sobre o assunto, se “alegram a vista”, logo deixam o bacharel nas “trevas da noite”. Assim sendo, “Passada a idade juvenil [...] quando a razão entra no seu completo desenvolvimento, o homem tem o dever de empregar-se em estudos mais sérios, de resultados reais, e nenhum mais importante do que os históricos (RIHGB, 1966: 447 ”. finda com estes termos o crítico literário Fernando Gil Portela Vieira.

 Compactuo da ideia de que não há autor nem livros superados, se pensados em determinadas épocas e contextos da escrita, sendo assim, “a história é necessariamente escrita e reescrita a partir das posições do presente, lugar da problemática da pesquisa e do sujeito que a realize”. Portanto, a discussão historiográfica relativa a Branca Dias deve ter como base de análise o entendimento daquilo de Michel de Certeau (1982) chamou de lugar social, ou seja, a inserção do autor no contexto de produção da sua escrita e das suas escolhas teóricas e metodológicas, para assim, entender o discurso histórico construído pelo autor.


 
Loja Maçônica Branca Dias, João Pessoa, Paraíba, Brasil





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